Descendo o Martelo. Ou não!

martelo O ordenamento jurídico enquanto “contexto de normas com relações particulares entre si” (BOBBIO, 1995) é pautado, impreterivelmente, pelo discurso dogmático. Por conta do teor decisivo da prática jurídica, faz-se necessária a existência de um conjunto de conceitos inquestionáveis, onde o jurista possa encontrar um alicerce para a construção de suas teorias. Visto que a indefinição prolongada é algo inaceitável à prática do Direito, não se pode questionar todo e qualquer pressuposto do ordenamento jurídico, sendo necessário o estabelecimento de dogmas. (COSTA, 2001)

Esses dogmas, na função de pressupostos inquestionáveis, têm papel fundamental ao exercício do Direito. Porém, são eles elementos suficientes para a resolução de todo e qualquer conflito? Pode-se dizer que não. Por mais que o ordenamento jurídico viva uma intensa busca pela completude, por uma maior abrangência e precisão interpretativa, ainda não se atingiu este status, e dificilmente atingir-se-á. A norma por si só mostra-se, frequentemente, insuficiente, seja pela sua ambiguidade, por uma possível antinomia – um choque com outra norma -, ou mesmo por uma imprecisão do texto normativo. (BOBBIO, 1995)

Sendo assim, o jurista depara-se constantemente com situações em que é necessário recorrer a elementos metajurídicos no que tange à tomada de decisões. Fatores econômicos, sociológicos ou até filosóficos se tornam fontes de onde o jurista pode beber para decidir de maneira mais coerente, preenchendo as lacunas da norma e adequando-a ao contexto social em que vive.

Entretanto, esse caminho pode se mostrar bastante perigoso, no sentido de que é necessária ao Direito, a existência do discurso dogmático, pois se assim não o fosse, as decisões pautadas apenas nos fatores extralegais conduziriam o sistema a um nível inaceitável de arbitrariedade. Então, como se dá o balizamento da introdução desses fatores além-norma no processo de tomada de decisões ao longo das transformações sociais? O gráfico a seguir pode ilustrar, de maneira simplificada, a circularidade do desenvolvimento do discurso dogmático, por meio da sua permeabilidade em relação a fatores metajurídicos.

gráfico ied


Do gráfico acima, pode-se extrair uma ideia simplificada de como funciona o padrão de evolução do discurso dogmático. Ao adotar uma postura estritamente normativa, a dogmática cai na armadilha já citada, de acreditar na ficção do ordenamento jurídico como panaceia, onde a norma tem uma resposta para todos os conflitos, e isto conduz a uma elevação da permeabilidade da dogmática aos fatores metajurídicos, que vêm no intuito de preencher as lacunas da lei. Porém, a permeabilidade excessiva também conduz o sistema a uma armadilha: a da arbitrariedade. Deixar de lado as normas faz com que o sistema entre em crise, pois a divergência das decisões põe em cheque a unidade do ordenamento jurídico, fazendo com que haja, novamente, uma maior normatização do sistema, e assim por diante.

Neste ordenamento, como supracitado, as normas não existem por si só, elas relacionam-se entre si, consubstanciando, portanto, num sistema jurídico. Logo, é por existirem ordenamentos que as normas jurídicas se fazem presentes. Diante de tal fato, pela grande diversidade de normas em um ordenamento jurídico (sobretudo os complexos), teremos alguns problemas dele decorrentes, como a unidade (o entendimento do ordenamento como uno e válido, a partir de uma análise hierárquica) e a coerência (a tentativa de mitigação das contradições). Por fim, é tautológico que o ordenamento que se mostra uno e sistemático, concomitantemente, tenderá à completude (buscará a extinção das lacunas).  (BOBBIO, 1995)

Destarte acima, é perceptível que, dentro deste ordenamento, haverá um discurso dogmático visando sempre à completude, em último grau. Logo, há uma espécie de escalonamento, no qual o discurso dogmático dentro desse sistema jurídico buscará sempre se mostrar completo.

Ademais, é interessante salientar o modo como o discurso dogmático se apresenta dentro desse ordenamento jurídico: ied1 A dogmática, segundo Kelsen (2006), é o “modo pelo qual as regras devem ser entendidas”. Ela auxilia, segundo Costa (2001), no processo de tomada de decisão, garantindo uma “estabilidade e previsibilidade” nas ações jurídicas, que garantem, ao menos, a justiça formal entre as pessoas (o igual tratamento). Entretanto, como mostra o quadro acima, a dogmática, apesar de permear todo o ordenamento jurídico, não se apresenta igualmente em todos. A dogmática usada para tratar de um caso concreto no direito civil não é a mesma que o jurista usará quando tratar do direito penal, por exemplo. No entanto, nada impede que haja a convergência de uma dogmática comum. (COSTA, 2001)

Para corroborar a distinção acima, vale-se usar do exemplo de revoluções políticas abordado por Kuhn (que a compara com uma revolução científica): “As revoluções políticas iniciam-se com um sentimento crescente (…) de que as instituições existentes deixaram de responder adequadamente aos problemas postos por um meio” (KUHN, 2013 p.178). Na ocorrência de revoluções políticas, um novo ordenamento jurídico pode ou não ser desencadeado (uma passagem da Monarquia para a República, por exemplo), o que não interfere na existência do discurso dogmático. Em outras palavras, o ordenamento jurídico é mutável (podendo até inexistir, a exemplo de um regime comunista), já a dogmática não: enquanto houver um fenômeno decisivo, haverá dogmática. Tendo esclarecidas estas definições, pode-se tratar agora do discurso dogmático da completude num ordenamento jurídico complexo.

Pressupondo que necessariamente haverá uma decisão e que esta tomará por base uma norma jurídica integrante do sistema (BOBBIO, 1997), tem-se a dogmatização da completude (o fim último de um ordenamento, como visto acima), ou seja, a de que as demandas serão pacificadas. Ao julgador não haverá, desta forma, espaço para selecionar casos: uma vez provocado, em seguida virá a sentença¹.

Embora não se exija a perfeição de um ordenamento jurídico para considerá-lo completo, eventuais antinomias podem surgir e ao julgador são disponibilizados instrumentos para buscar solução, a exemplo da integração normativa. Se a norma em si ou outra de mesma hierarquia que trata de caso semelhante não são suficientes, inicia-se uma escalada na pirâmide normativa com o intuito de buscar respaldo decisório. (BOBBIO, 1995)

Acrescenta-se, entretanto, que essa busca não pode se macular de incoerência, pois, ao consultar a unidade normativa, o intuito é abstrair dela princípios que harmonizem o todo de forma que, mesmo numa eventual lacuna, o preenchimento dos espaços seja coerente. Não há que se confundir, todavia, preenchimento com liberdade para criar direito alienígena ao sistema: uma norma enquanto pertencente a uma unidade sempre busca validade em outra logo acima (KELSEN, 2006), ao passo que inovar desconsiderando totalmente isso é arbitrariedade do julgador.

Assim, o dogma da completude tem sua função de trazer certeza de resposta. No entanto, considerando os fenômenos metajurídicos que modificam a sociedade cada vez mais rapidamente e também que as normas são incapazes de acompanhar isso, é perceptível, na busca de atender ao dever de julgar, uma maior ocorrência de abstrações que extrapolem as normas previstas para o caso concreto. O perigo decorrente disso é, como supracitado, a incerteza que eventualmente possa se instalar no sistema jurídico e uma consequente inversão de papéis entre quem edita normas e os aplicadores das mesmas. Quando isso ocorre, comumente, as normas positivadas tendem a ceder em seus dogmas, com o intuito de evitarem a proliferação de antinomias e, na sequência, não se ver diminuído o papel do legislador.

Portanto, é possível abstrair que o Direito tem por pressuposto dar uma resposta e evitar, em certa medida, a excessiva divagação que não traga certezas. Assim, ao se enunciar “tudo é relativo” não se cria um absoluto em que qualquer base argumentativa possa ser pulverizada numa eventual contradição ou não aceitação em sentido contrário do pretendido. A própria enunciação, quando generaliza, se distorce: se tudo é relativo, logo até a própria frase é suspensa e, em conclusão, nem tudo é relativo e haverá situações não relativizáveis.


Notas:

¹A sentença sempre irá vir, mesmo quando o juiz decida, como no non liquet, que o Direito não pode responder o caso, por exemplo. No entanto, vale afirmar que, mesmo nesse caso, haverá uma dogmática.


Referencias:

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995, 6ª ed.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Cap. V: Dinâmica Jurídica.

COSTA, Alexandre. Introdução ao Direito. Cap. II: normas jurídicas

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 12ª ed.,  São Paulo: Perspectiva, 2013

Deixe um comentário